Com o FuzzBunch, a NSA compilou um conjunto de vulnerabilidades que permitem a intrusão, e a espionagem de computares na Internet. Duas das vulnerabilidades existentes no kit usado pelos espiões americanos foram exploradas para lançar o WannaCry. Passadas 300 mil infeções fomos ver como ver funciona a ferramenta que começou a ser disponibilizada na Internet por um misterioso grupo de hackers, depois de uma não menos misteriosa fuga de informação
Nada disto deveria ter acontecido. Paulo Rosado, consultor em cibersegurança, sabe-o e quem o está a entrevistar também. E não são os únicos. Todos os internautas de alguma forma têm a ideia de que não é suposto haver um programa que permite aceder aos dados pessoais existentes em todos os outros computadores do mundo. Sabem as 300 mil potenciais vítimas que foram afetadas pelo ransomware Wannacry ao longo da semana; sabem todos os que ainda não foram vítimas; e provavelmente também sabem os operacionais da própria Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA) que criaram um arsenal informático e algorítmico que lhes permite estar virtualmente em qualquer ponto do Globo. Foi assim que surgiu o kit FuzzBunch. Parece nome de app de telemóvel mas é uma coleção de vulnerabilidades e ferramentas que permite assumir o controlo de máquinas que funcionam com os sistemas operativos Windows, que são usados pela esmagadora maioria dos computadores do Planeta. No verão, a Fuzzbunch foi libertado por um misterioso grupo de hackers de nome Shadow Brokers. Hoje, qualquer pessoa pode descarregá-lo a partir de repositórios de programas que perambulam na Internet. Paulo Rosado descarregou o ficheiro. E dispôs-se a mostrá-lo – com uma condição: nenhuma das missões pode afetar outros computadores que não o dele. Tudo o resto é interdito. E desaconselhado.
Como é que se faz um ataque que envolve três computadores quando só se pode usar um? Resposta: Com uma técnica que dá pelo pouco charmoso nome de virtualização, mas que tem a virtude de criar três computadores que só existem como entidades digitais, e podem ter configurações, funcionalidades, e até sistemas operativos diferentes – mas usam apenas um único equipamento. No limite, a mesma técnica pode ser usada para determinar que o computador do Joaquim usa apenas um terço da capacidade de processamento, memória e arquivo de dados ou bateria, que serão atribuídos em capacidades iguais ao Francisco e à Luísa enquanto vão alternando o uso do mesmo computador.
Agora imagine-se o seguinte: o Francisco tem um Fuzzbunch e pretende atacar o Joaquim em conluio com a Luísa, que encomendou o ataque. É essa operação que Paulo Rosado começa a demonstrar quando inicia o uso do kit de ciberarmas da NSA. «A primeira vez que fiz download do FuzzBunch o antivírus do meu computador classificou-o como código malicioso. Tive de preparar um computador virtual de forma a que se conseguisse instalar o kit de ferramentas», explica Paulo Rosado.

Todo o charme de FuzzBunch se esgota no próprio nome. A caixa de ferramentas da NSA não é mais que um ecrã preto com múltiplos carateres brancos. Todas as ações exigem a inserção de dados relativos endereço IP, “portos” de comunicações ou payloads (as “cargas” transportadas aquando da intrusão, que executam ações determinadas pelos hackers). Todas as peripécias imortalizadas por James Bond não têm lugar aqui; teclar será, provavelmente, a única ação levada a cabo durante as diferentes missões de um ciberoperacional da NSA.
Notoriamente, o Fuzzbunch é um ambiente mais propício para quem sabe programar, mas Paulo Rosado recorda que na Internet já se encontram múltiplos tutoriais capazes ensinar até quem não é programador a usar este conjunto de ferramentas. Esse é o lado perverso e assustador da inexplicada fuga de informação que permitiu aos Shadow Brokers distribuírem, no verão de 2016, o FuzzBunch – e que viria a ser secundada por uma outra conhecida por Vault 7, com a distribuição de ciberarmas da CIA pelo grupo hacktivista Wikileaks, em março.
Também foi em março que a Microsoft lançou um update que tinha por objetivo sanar vulnerabilidades conhecidas por EternalBlue e DeepPulsar. Com essa atualização dos sistemas operativos Windows são eliminados pontos de intrusão em versões antigas de um protocolo conhecido por SMB, que tem por objetivo a troca de mensagens – e como tal também pode ser usado para enviar ordens, fazer intrusões, apagar dados, desencadear aplicações, bloquear computadores com ransomware para poder exigir resgates, aceder à rede interna de uma organização e mais um sem número de patifarias que um hacker consiga imaginar.
A lista é exaustiva e pouco honrosa para quem a quiser divulgá-la ao detalhe – mas a verdade é incontornável: Por muito imbricadas que sejam as patifarias de um hacker, é bem provável que se encontrem no cardápio do Fuzzbunch. E todas elas revelam uma certa veia destes geeks espiões para a criação de marcas que ficam no ouvido. Mas centremo-nos apenas em duas dessas ferramentas/vulnerabilidades – precisamente aquelas que se tornaram o pior tormento das equipas de informática de milhões de empresas que se esqueceram ou adiaram a atualização dos sistemas operativos e que, in extremis , optaram pelo corte de acessos à Internet, e-mails, para evitar o sequestro das máquinas.
O Azul Eterno
Já não restam muitas dúvidas: houve contágio por e-mails, mas foi a exploração da vulnerabilidade conhecida por EternalBlue o principal método de propagação do WannaCry. O EternalBlue uma ferramenta que tira partido de um protocolo de comunicação já datado e que permite que um computador envie automaticamente um pacote de dados a outro sem que nenhum dos legítimos donos perceba. Com este envio de dados, um computador infeta o outro – e a uma velocidade mais rápida que o e-mail. Mas isso não chega para, no nosso cenário hipotético, a Luísa assumir o controlo do computador do Joaquim. É apenas o primeiro passo – que tem de ser executado por Francisco, se quiser cumprir a missão solicitada por Luísa (lembrete: o exercício aqui descrito tem por ponto de partida um ataque solicitado pela Luísa ao Francisco contra o Joaquim).

Com o DoublePulsar, a máquina infetada contacta com a máquina do hacker. Mas antes deixa um backdoor que permite o regresso dos hackers ao computador da vítima.
Ao estabelecer a comunicação com a máquina de Joaquim, Francisco não só encontra um potencial ponto de intrusão como passa a recorrer a uma segunda vulnerabilidade, que dá pelo nome de DoublePulsar. Através dessa vulnerabilidade, é executado o payload (a tal “carga”) da mensagem anterior, que por sua vez desencadeia uma ligação a um terceiro computador com as coordenadas pretendidas. Além disso, é criado um backdoor que permite ao hacker voltar mais tarde ao computador infetado. E é assim que o computador do Joaquim estabelece comunicação com o computador da Luísa, que é a mandante do ataque.
De seguida, a Luísa poderá usar ferramentas de ataque variadas para instalar pedaços de código que ora ficam em modo de escuta, ora fornecem dados em jeito de relatório sobre a máquina infetada ou permitem avançar com diferentes métodos de ataque. É nesse momento, que Luísa assume o denominado comando e controlo da máquina de Joaquim. No caso do WannaCry, é o momento em que é desencadeada a tecnologia de cifra que permite bloquear um computador e exigir um resgate em contagem decrescente no que toca ao tempo e em contagem crescente em relação valor a desembolsar.

No ecrã do computador de Luísa, o sucesso da missão é sinalizado com aquele que será o único recurso gráfico de toda esta ferramenta: múltiplos travessões alinhados, com a palavra «win» ao centro. A estética desta mensagem de sucesso tem similaridades inegáveis com uma certa moda das décadas de 1980 e 1990, que deu a conhecer laboriosos desenhos produzidos apenas e só com carateres de processadores de texto.
Todo o processo de ataque não terá demorado mais de 30 minutos, entremeados de entrevista, um ou outro apontamento sobre as ferramentas existentes, e um ou outro contratempo típico de quem, apesar de programador, não tem rotinas a usar a aplicação.
«O kit também contém ferramentas que apagam todos os vestígios a fim de evitar a deteção durante análises forenses que venham a ser feitas aos computadores infetados», acrescenta Paulo Rosado.
Atacar uma máquina pode não ser especialmente moroso, mas o cenário tende a ganhar complexidade quando se trata de atacar milhões de máquinas com um conjunto de ferramentas que, no limite, podem executar diferentes funcionalidades numa gigantesca orquestra do cibercrime, que pode atuar em diferentes cenários e missões.

Através da falha conhecida como EternalBlue, as caixa de ferramentas da NSA estabelece contacto com um computador de uma vítima. O sucesso da intrusão é sinalizado com um recurso gráfico e a palavra «win»
Mesmo que muitas das funcionalidades de gestão das máquinas infetadas possam ser automatizadas, é fácil concluir que o ciberbraço da NSA será sempre um consumidor intensivo de recursos humanos que têm de combinar paciência para tarefas rotineiras e uma tendência para ver as coisas ao contrário do estabelecido, com conhecimentos de programação, algoritmos, lógica matemática ou redes de telecomunicações. O que pode exigir uma equipa de especialistas – ou a divisão de tarefas, como sucede na indústria que o cibercrime montou ao longo dos anos.
«O kit também contém ferramentas que apagam todos os vestígios a fim de evitar a deteção durante análises forenses que venham a ser feitas aos computadores infetados»
Em qualquer dos casos, um dia de trabalho com o FuzzBunch não deverá ser assim tão diferente das rotinas típicas de quem passa oito horas a programar, a escrever notícias ou a trabalhar dados num software de gestão: Um humano frente ao computador que terá dias em que desespera por chegar à hora de saída como em qualquer outra profissão. Só a execução das missões em si permite imaginar algum momento mais emotivo ou comparável aos guiões de Hollywood.
Será que todos eles seguem a rotina sem nunca se questionarem? Edward Snowden, ex- operacional da NSA atualmente exilado na Rússia, mostrou com a primeira mega-revelação de métodos e ferramentas dos serviços secretos dos EUA, que até no arrependimento um ciberoperacional não será muito diferente de um empregado de escritório. É essa a maior das ambiguidades éticas das fugas de informação e das ferramentas dos serviços secretos: a mesma FuzzBunch que hoje está disponível na Internet para miúdos e graúdos, abrindo caminho para múltiplos sucessores mais sofisticados do WannaCry pode ser aproveitada para alertar autoridades e internautas em geral. «Este ataque revelou que algumas organizações ainda não estão suficientemente maduras para proteger os seus dados e os dados pessoais dos seus utilizadores e clientes, sendo que em maio começa a ser aplicado o novo Regulamento Geral de Proteção de Dados da UE».», refere Paulo Rosado, lembrando outra agravante decorrente do contágio levado a cabo pelo WannaCry: «Este ataque revelou que as organizações ainda não estão a proteger os dados pessoais como se desejaria, sendo que em maio começa a ser aplicado o novo Regulamento Geral de Proteção de Dados da UE».
A caça ao hacker pode estar apenas no começo.
Fonte: Exame Informática Semanal, 20 de Maio de 2017